Saramago: "Bíblia tem coisas admiráveis"




A Bíblia "tem coisas admiráveis do ponto de vista literário" e "muita coisa que vale a pena ler", disse esta quarta-feira José Saramago, em resposta a críticas de que foi alvo devido ao seu último livro, "Caim". O Prémio Nobel citou o livro dos Salmos, "com páginas belíssimas", o Cântico dos Cânticos, ou a parábola do semeador contada por Jesus. Mas Saramago reafirmou que "na Bíblia há incestos, violência de todo o tipo, carnificinas, etc. É uma verdade inquestionável". 


"Todo este alvoroço não se levantou por causa do livro", disse Saramago, "mas por causa de palavras que eu disse em Penafiel." O escritor criticou a Igreja, que, na sua opinião, "reagiu de forma algo disparatada. Aquilo que eles querem e não conseguem seria colocar ao lado de cada leitor da Bíblia um teólogo que lhes diga que aquilo não é bem assim. O sentido que tem não convém e por isso arranja-se um outro sentido. Mas eu leio apenas aquilo que lá está". 

Referindo-se ao seu último romance, Saramago disse que ele não teria existido "se o episódio de Caim e Abel não estivesse na Bíblia onde mostra a crueldade de Deus. Um Deus rancoroso, vingativo e má pessoa. Não há que ter confiança no Deus da Bíblia".
Assumindo-se como ateu - "que já é um acto de sensatez" - o escritor ressalvou que "não há ateus absolutos" e que muitos dos valores que interiorizou ao longo da vida "são cristãos".
"Há pessoas que dizem que tenho coragem. Não sou cobarde, mas a segunda razão forte para ter escrito é que já não há fogueiras [da Inquisição]", admitiu. 

Perguntado se num próximo livro iria falar do Corão, Saramago respondeu que "Não tenho a intenção de abordar o Corão, tenho mais que fazer, estou a escrever outro livro que não será tão polémico como este". 

Depois do lançamento em Penafiel, "Caim" vai ter outro em Lisboa, previsto para dia 30 de Outubro, às 18h30, na Culturgest, com a presença do autor na sessão de entrada livre. 

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Fonte: Esquerda.Net







Saramago quer 'Caim' livro em vez de um caso político
por JOÃO CÉU E SILVA


O Nobel gostaria que o livro fosse mais lido em Portugal e menos criticado por quem ainda não o fez. Zeferino Coelho anunciou negociações de direitos que garantem uma grande difusão mundial.

Caim pode ser a continuação do tema tratado no Evangelho segundo Jesus Cristo, mas José Saramago não quer o novo livro politiza-do. Quando ontem o questionaram sobre o que pensava das declarações do eurodeputado do PSD, Mário David, o Nobel da Literatura só abriu a boca para comentar: "Nada a dizer." 

Nem comentou a declaração da também eurodeputada do PS Edite Estrela, em que acusava o social-democrata de ter uma "atitude inquisitorial" ao criticar o escritor pelas suas posições contra a Bíblia (ler caixa). A razão é simples, Saramago quer que Caim seja a sua opinião sobre o Antigo Testamento, tal como o Evangelho foi sobre o Novo Testamento, e visto como um trabalho literário em vez de palco de arengas político-religiosas. 

Curiosamente, depois das invectivas proferidas em Penafiel, o escritor encaminhava as suas declarações, sempre que possível, para o seu Caim, enquanto a Bíblia só aparecia quando necessária. 

Nem mesmo quando jornalistas de vários países o questionaram, no auditório do Grupo LeYa, sobre a polémica, Saramago quis levar a sua opinião para territórios menos sólidos. Podiam ser o jornalista suíço, espanhol ou francês, as três televisões nacionais em directo e a CNN ou os profissionais mais entendidos em questões religiosas a crivá-lo de perguntas, José Saramago não abandonava a tese de que Caim é um livro e que ninguém fala dele com esse estatuto; que da Bíblia ninguém pode ignorar a sua crueldade e carnificina e que todos sabem que é assim. 


Surpreendentemente, o mais polémico dos escritores portugueses resistia a deixas fáceis e criticava quem as tem: "Há qualquer coisa estranha. As pessoas são incapazes de controlar os seus impulsos." Tudo isto porque foram para ele inesperadas as "reacções dos católicos porque eles não lêem a Bíblia".


Saramago compreende essa faceta dos católicos, porque "ninguém vai ler a Bíblia por devoção", principalmente o Antigo Testamento. Considerou--se pouco ingénuo, mesmo quando muitos dos que o criticam, entre eles D. Manuel Clemente, assim o referem. "Dizem que li a Bíblia com ingenuidade porque é necessário fazer uma interpretação simbólica, ou seja, aquilo que ali está escrito não tem sentido por si. E levou mil anos a ser escrito!"
Saramago esclarece que não escolheu Caim em vez de Abel por acaso: "É que ele acompanha-me há muitos anos. Li o Livro de Job, o Cântico dos Cânticos, o Livro dos Salmos, mas Caim sempre me foi estranho por Deus ter aceite um sacrifício que nenhum teólogo pode explicar." Tal como não compreende porque é que Deus, "que criou a humanidade, a mata mais tarde com o dilúvio". 


Saramago considera que a conclusão a tirar desta polémica é apenas uma: "Na Igreja ninguém toca." Contrapõe: "Isso é o que pensa a Igreja!" Continua: "O Deus da Bíblia não é de fiar"; a "Bíblia é um rosário de incongruências"; a "Bíblia é um livro sagrado e nenhum dos meus o é"; a Bíblia "não é uma invenção minha"...


No final, Saramago acabou por confessar os seus votos perante esta crise nacional provocada por Caim: "Desejava que os ventos acalmassem e que o livro possa ser uma obra literária" e que a contestação religiosa não se transforme "em insulto ao autor". Não se ficou por aí ao expor a sua situação perante a religião: "Eu sou ateu mas capaz de ser sensato"; "Só o ser ateu é uma mostra de sensatez"; "Não há ateus absolutos porque não existem sociedades onde Deus não tivesse entrado. Posso rejeitar mas está cá e não posso apagar Deus ao dizer que não existe."


Antes de dar por encerrado o encontro com a imprensa ainda fez uma revelação: "Há pessoas que dizem que tenho coragem. Não sou cobarde, mas a segunda razão forte para ter escrito é que já não há fogueiras da Inquisição." Não se despediu sem recordar que outros escritores antes se inspiraram nos textos bíblicos: Thomas Mann e Byron.
 
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